segunda-feira, outubro 18

CONTO : "A ilusão dos olhos faladores, 10 segundos após a existência das lâminas"

Ao sair de uma derramação eléctrica, onde a permanência do Ró sobressai no centro das mentes cansadas, o Eu decide dirigir-se para o antro das argolas cavaleirescas, a fim de tomar um café.
O Eu sobe as escadas que dão saída para o mundo, e encaminha-se para o local onde passará o autocarro laranja. Será essa laranja que o levará até ao tal antro atroz.
Chega ao antro, entra, procura em vão companhia e, por fim, decide instalar-se numa cadeira vazia junto a uma mesa tambem vazia. Decide, por isso, e só por isso, agarrar-se à sua insignificante existência. Olha à sua volta e fica perplexo com tudo o que os seus tristes olhos conseguem avistar. Será talvez demasiado cansativo, embora nunca vazio de interesse, fazer uma descrição pormenorizada dessa visão. O Eu, por não querer esconder todo esse interesse às mentes alheias, vai correr o risco do cansaço, e percorrer toda essa linha até ao final. Pois bem, preparem-se!!
Ele olha à sua volta e avista um número infinito de cadeiras ocupadas por jovens velhos e velhos jovens que comunicam animadamente, utilizando para isso tema banal seguido de outro tema banal, que os fazem esquecer tudo quanto os rodeia. E que será que os rodeia?
Não mais que as colunas circulares e caneladas, lâmpadas hexagonais e tudo o resto que vai servindo de decoração ao antro. Mas será só isto que o Eu consegue visualizar? Não! O Eu vê mais que isto. Vê caras, cara triste e cara alegre, caras melancólicas, carregadas de tédio e todas as outras palavras chatas que toda a gente usa frequentemente. Ele sente que essas caras entraram numa paragem da morte.
De repente poisa os olhos num grupo de jovens velhos e decide analisá-los. Pratica um acto de má educação e põe-se à escuta. A conversa por fim começa a penetrar nos seus ouvidos. Escuta-a com interesse, e que ouve? Ora bem! Ele ouve tudo, menos o que gostava de ouvir. Toda a conversa se resume a: o fulano tal fez isto, ontem aconteceu-me aquilo, eu tenho isto e aquilo, aquelas tipas são assim, os outros tipos são assado, gostava de fazer isto, etc, etc, etc,..., enfim banalidades e coscuvelhices que aprenderam com os avós. Que juventude velha tão “fora”!!!
Finalmente chega o empregado que já tardava. Como sempre, o Eu pede um café e um copo de água a que o empregado responde com um toque de cabeça. Espera e, enquanto espera, continua a observar todos os que o rodeiam, descobre caras novas e outras já conhecidas de todos os dias, enfim, sempre a mesma monotonia.
O café chega acompanhado da água, faz-se a respectiva troca de dinheiro e o empregado parte em busca de alguém que precise dos seus préstimos.
Corta o pacote de cristais de açúcar, verte-o cuidadosamente no café, e depois de o mexer com movimentos certos e ritmados, passa-o atravez dos lábios, engolindo-o logo de seguida. Todo este ritual não estaria completo se, em cima do café, não bebesse um pouco de água.
Depois de terminado o ritual, pára para pensar e descobre que sente a falta de alguém. Alguém que se pode encontrar todo os dias no antro, e que naquele dia não contava nas caras. O Eu fica angustiado, e decide resignar-se com tal ausência. Acende um cigarro, que saboreia até ao filtro, volta a acender outro cigarro e deixa que o olhar se perca na longitude do outro lado do largo.
Já o olhar se cansava quando, de repente, sente um arrepio percorrer a espinha dorsal, mas desta vez não era da questão. Conseguem imaginar o que seria? Não é facil. O Eu acabara de avistar a cara que estava ausente até aí. A cara não é mais que o Lâminas. O Lâminas caminha na parte exterior do antro, pára junto de outras caras suas amigas e começa uma conversação animada e interessante, da qual o Eu não conseguia decifrar uma única palavra.Passados alguns minutos, o Lâminas decide ter vontade de passar pelos lábios algo que possa saborear, talvez um café, e encaminha-se para a porta. Entra e, uns segundos após esse seu acto, pára, como se tivesse sido electrocutado. O Eu olhava-o e ele olhava para algo paralizado. Passados alguns segundos, o Eu estremeceu porque percebeu que era para si que ele olhava. Passaram-se largos minutos em que os olhares se cruzavam numa conversação de que que ambos estavam alheios.
(continua...)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

1. Como alguém disse há muito,nenhum homem é uma ilha. Até pode não ser, mas como se explica então que no meio da multidão, onde a única coisa unissona é a amálgama de ruídos improfundos, se possa sentir uma ilha? Talvez porque veja e sinta as coisas e as pessoas de forma invulgar e procure nelas uma dízima, pelo menos, da novidade de ser e de se descobrir como é ali e agora. 2.Seria apenas mais um dia de uma mudez recíproca, entre a multidão e a ilha sentada à mesa de um café, se não vosse a esperada e surpreedente aparição de Lâminas. Se não tivessem falado tão alto um com o outro, através do silêncio hospedado no olhar que trocaram. Um olhar intenso que fura a membrana vazia de um espaço irrelevante.
Beijo enorme, Linda

9:10 da manhã  
Blogger mabeka said...

Não somos ilhas, ou pelo menos não somos "estanques" ao que nos rodeia. Há sempre algo no meio da multidão e do rúido que nos prende.
Esta pequena estória é passada num dos cafés mais movimentados de Almada, o Café Central. É o sitio ideal para através da observação se perceber a vida da cidade, principalmente de uma cidade pequena como Almada.

5:33 da tarde  

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