Á deriva na inquietude - III
A madrugada prolongava-se, a
inquietação aumentava e não tinha nada que o pudesse acalmar. Deu
mais duas voltas na cama, olhou o telemóvel, sorriu e lembrou-se. Lembrou-se da última
vez que tinha sido tocado com paixão. E a que paixão a Lianne se
entregava. Era sempre tão intenso estar com ela. Sentia falta
dos seus lábios, das suas mãos, do modo como se entregava. De
repente sentiu-se excitado.
- Mau! Isto vai de mal a pior.
Levantou-se, respirou fundo,
entrou na casa de banho e mijou.
- Preciso de água,
de um cigarro e isto passa.
Ouviu o telemóvel
tocar e olhou para o relógio.
- Uauh! Às cinco horas
da manhã?
Era a Lianne, finalmente!
Apressou-se a atender.
- Olá papoila!
Estava a pensar em ti. Acordaste agora ou acabaste de chegar a casa? –
Riu-se.
Ouviu a Lianne falar-lhe da
grande noite de copos que tinha tido. Ela era assim, adorava festarolas, achava
até, que ela vivia apenas para isso, para a grande festarola. Foi
ouvindo-a e a vontade de estar com ela foi crescendo.
- Quando é que nos
vemos, papoila? – Disse a medo da resposta não ser aquela que mais desejava.
Depois de lhe falar de todas as coisas
que tinha para fazer, Lianne por fim, combina um jantar em sua casa para daqui
a uns dias. Sorriu ao antecipar como seria bom. Ia estar com ela.
Continuaram a conversa por mais
uns minutos repletos de disparates e gargalhadas sinceras, eram assim a maior
parte das suas conversas, e por fim desligou.
- Beijo bom, papoila linda –
sorriu e desligou.
Olhou para o tecto. Dormir, era
bom dormir. Mas esta papoila poe-me em alvoroço.
Torceu o nariz e olhou para a
janela. Já estava a surgir o dia e ainda não tinha pensado em álcool, estranho.
Enrolou um cigarro com as mãos trémulas do costume. Depois de uma bela
bafurada lembrou-se da conversa com a Mags. Tinha que voltar a falar com ela e
dizer-lhe o que pensava. Sim, podia tentar voltar a tocar mas sabia que não
ia ser fácil voltar a lidar com Lex e de certo Mags não
ia achar piada ás discussões constantes. Tinha sido assim desde
que se lembrava, duas almas quase incompatíveis que nem precisavam de abrir a boca
para se chatearem um ao outro. Sempre que tocavam juntos bastava uma nota fora
do sitio, ou mesmo colocada no sitio bem demais, para o Lex se passar, como se
estivesse sempre a competir. Mas os anos passaram, estavam todos mais velhos,
talvez estivessem diferentes. Ou não.
Pegou no telemóvel
com a ideia de enviar um "call me" á Mags, quando ouviu alguém bater á
porta.
- Catano, logo de madrugada? Mas
quem é a besta que me vem chatear agora?
Levantou-se de um pulo, tropeçou
nas botas e bateu com a cabeça na esquina da parede.
- Porra! Isto começa
bem, começa! E ainda nem água bebi!
Dirigiu-se para a porta com a mão
a pressionar a testa, quando ouviu bater de novo.
-Já vai! - gritou e arrependeu-se logo a
seguir. Que dor de cabeça tinha acabado de arranjar e tudo á
custa de uma qualquer avantesma madrugadora, pensou.
Abriu a porta de rompante e deu
de caras com o seu mais recente pesadelo, o senhorio.
- Bom dia sr. joseph, venho mais
uma vez lembrar-lhe que tem a renda em atraso. Isto não pode
continuar assim. Ou resolve isto rapidamente ou tenho que tomar medidas.
- Bom dia, eu sei, eu sei. Estou
a tentar resolver mas está difícil. Vai ter que me dar mais algum
tempo. Mas podia vir dizer-me isso a horas mais decentes, não?
- Olhe, está
avisado - disse o senhorio ao virar costas.
Joseph fechou a porta com estrondo.
Raios
partam esta merda, já me tinha esquecido deste traste,
pensou. O dinheiro mal lhe dava para comer, beber uns copos e pagar algumas
contas. Passava a vida a fazer malabarismos com os trocos e a renda não
fazia parte desse número.
-Este gajo qualquer dia passa-se
e vai ficar tudo lixado. Lá vou eu viver na rua, outra vez. Que
raio, logo de manhã? Já me fodeu o dia todo!
Entrou na casa de banho e
olhou-se ao espelho.
- Heya, agora é
que estás mesmo bonito! - riu-se ao ver metade da testa em ebulição
de tão vermelha. Lavou a cara, bebeu água em abundância e pegou
an escova de dentes. Já não havia pasta dentífrica. Ficou a olhar
para a escova e para o tubo de pasta espalmado até dizer mais não.
- Que se lixe, vai mesmo sem
pasta, fazer o quê?
Escovou os dentes, passou com o
pente no cabelo e sorriu a olhar para o espelho.
- Bem te podes esforçar,
melhor que merda dificilmente ficas! - disse para o espelho a rir de si mesmo.
Vestiu a mesma t-shirt e
sentou-se a enrolar um cigarro. Tinha mesmo que dizer algo á
Mags, podia ser que o seu dia melhorasse. Acendeu o cigarro, deu duas bafuradas
e recostou-se. Pegou no telemóvel e enviou um "call me" a
Mags. Agora era aguardar que ela ligasse de volta.
Começou a sentir
fome, lembrou-se que deveria de ter uma lata de sardinhas algures perdida no
fundo no armário. Levantou-se lentamente e ao olhar para as botas, deu-lhes
um pontapé valente.
- Saiam lá do meu
caminho! - praguejou logo de seguida pela dor que tinha acabo de infligir a si
próprio.
Na cozinha era o caos de sempre.
Lembrou-se que se tinha esquecido de a tentar limpar. O melhor era esquecer-se
de novo, pensou. Abriu o armário e, sim, lá estava ela, a
última
conserva perdida. Abriu-a e olhou em volta.
- Olha, um bocado de pão
seco, boa!
Foi partindo o pão
em bocados mais pequenos, chafurdando na lata enquanto pensava numa tacinha de
vinho.
- Raios, vai mesmo água!
Que remédio!
Pegou num copo, encheu-o na
torneira e bebeu um pouco.
- Aaarrghh.....
Já com o estomago em estado de não
insulto voltou para a cama. Restava-lhe esperar pelo telefonema de Mags antes
de pensar em outra coisa qualquer. Ir para a rua antes disso poderia ser
arriscado. De quando em vez tinha uns laivos de bom senso, sem sequer perceber
de onde eles vinham, mas ainda bem que os tinha, pelo menos achava isso na
maior parte das vezes, noutras nem por isso.
O tempo passava e ele sentia-se
cada vez mais entorpecido. Não estava a gostar daquilo, não
ia passar o dia na cama. Olhou para o telemóvel e constatou que já
passava da hora de almoço. Não, não ia ficar ali. Levantou-se e sentou-se
na cama.
- Ok, vamos lá
ver que merda vamos fazer hoje.
Calçou as botas, vestiu o blusão,
enfiou nos bolsos as coisas do costume e saiu. Sentiu o sol bater-lhe na testa
dorida e arranhada.
- Preciso é de álcool
para desinfetar - disse a rir-se.
Começou pela sua
paragem habitual. Espreitou, deu dois passos no interior e voltou a sair. Não
havia por ali ninguém que lhe pudesse pagar um copo. Começou
a vaguear sem saber muito bem onde ir quando viu o seu vizinho, o da alcunha
esquisita, vir na sua direção
- Hey rapaz!
- Olá Joseph, estás
bem?
- Sim, andava a ver se encontrava
alguém que me pagasse uma tacinha e olha, encontrei-te! - disse com
uma gargalhada
- Oh Joseph, não
pode ser. Tenho uma coisa importante agora. Mas recebi algum dinheiro. Toma lá
20 paus e diverte-te amigo. A de hoje é por minha conta! - disse a rir-se.
- Mas o que te aconteceu á
cabeça?
- Opá, visita do
estupido do senhorio logo de madrugada. Baralhei-me nas pernas e bati c9m a
testa onde não devia. Mas isto não é nada. Logo passa.
- Bom, tenho de ir. Ve lá
se não estragas o resto pá!
- Vou tentar!
Joseph guardou o dinheiro com um
sorriso de orelha a orelha.
- Obrigada amigo, és
um catita!
Separaram-se indo cada um numa
direção oposta. Joseph sentia-se eufórico. Tinha dinheiro suficiente para ir
ao supermercado comprar uma garrafa de vodka, uns litros de vinho de pacote e
talvez alguma comida.
No supermercado correu como de
costume, todos a olharem para ele, o segurança a segui-lo como se da sua sombra se
tratasse e até a rapariguinha da caixa, que geralmente tem medo de olhar
para ele, decidiu fixar o olhar na sua testa, com um ar de reprovação.
Como se ela sequer imaginasse o que lhe tinha acontecido. Enfim, já
estava habituado, era sempre assim. Num mundo onde as aparências é
o que mais conta, ele era o borrão. Há muito tempo que isso tinha deixado de o
incomodar, se é que alguma vez o incomodou.
Pagou e ainda ficou com alguns
trocos no bolso. No caminho para casa decidiu que ia passar o resto do dia ao
sol com os seus headphones e a garrafa de vodka. Ia ser uma bela tarde.
Era assim que estava quando o
telemóvel tocou, esticado no chão do seu quintal improvisado, com a
garrafa ao lado e a abanar a cabeça ao som de uma das suas bandas preferidas.
Desligou o som para poder atender. Era a Mags.
- Olá Mags, já
pensava que não me ias ligar.
- Olá rapaz, só
agora foi possível. Amanhã vamos ensaiar, queres vir e ver
no que dá? Ficava-mos logo todos a saber como ia ser. O que te parece?
- Parece bem, tens é
que passar por aqui para poder levar o baixo, pode ser?
- Combinado! Amanhã,
fim de tarde. Até lá moço!
- Até Mags!
Desligou e sorriu. Pronto, isto
estava resolvido. Logo se veria se era mesmo isto que queria, voltar a tocar com
a Mags e companhia. Deu um gole na garrafa e torceu a cara num esgar de
perfeito horror.
- Porra, que este é
mesmo do mau. Mas bate que se farta. - disse a rir-se.
Ia voltar a colocar os headphones
quando o telemóvel tocou de novo.
- Outra vez? - disse a olhar para
ele.
- Ah é a papoila....
Lianne
Todo o seu rosto se iluminou
enquanto pensava que a tarde já estava a correr bem demais para o que
seria normal.
- Papoila linda! Como estás
tu?
- Joseph... Estou bem e contigo,
está tudo bem? Estava aqui a pensar... Estou com vontade de jantar
contigo hoje, o que achas disso?
- Oh papoila, parece-me muito
bem! Daqui a pouco estou aí, é isso?
- É, é isso.... Cá te espero então.
Até já.
- Até já
papoila linda.
Sentiu-se excitado. Ia ter festa
boa esta noite. Que mais poderia desejar, voltar a sentir de novo o toque da
sua papoila. Sentiu que a vida voltava a reparar nele, seria mesmo isso? Ou
seria mais uma das rasteiras maldosas com que a vida gostava de o presentear? O
melhor era não pensar muito nisso e deixar-se levar.
- É isso, deixa-te ir carcaça
e aproveita.
Riu enquanto calçava
as botas. Cheirou a t-shirt e fez uma careta. Trocou de t-shirt, enfiou o blusão,
enfiou tudo o que era costume nos bolsos e estava pronto para sair. Bateu com a
porta e com um sorriso iluminado começou a movimentar as pernas tortas, ia ser
uma caminhada até casa de Lianne. Ia finalmente poder estar com a sua papoila e
as saudades que dela tinha. Sabia que ia ser só uma noite e mesmo essa noite só
aconteceria se a Lianne para aí estivesse virada. Ela assim era, só
fazia o que lhe apetecia quando e com quem queria. Mas não era isso que
gostava nela? Sim, também era isso que o fazia desejá-la.
Esta sua total independência de tudo e de todos, o seu modo de viver o hoje
como se não houvesse amanhã, a completa ausência de tabus
e preconceitos, a liberdade com que se dava. Era tudo isso que o fazia desejá-la
e quanto menos a tinha, mais a queria ter, tornando esse desejo num sofrimento
acentuado. Sabia que esta relação não lhe fazia lá muito bem,
mas a verdade é que os momentos com ela valiam por todo o tempo em que se
sentia mal por a não ter.
De repente percebeu que já
estava á porta de Lianne. Tinha caminhado quase sem dar por isso
envolto nestes seus pensamentos. Aprumou-se, apagou o cigarro que tinha vindo a
fumar e tocou a campainha. Apenas alguns segundos depois Lianne abre-lhe a
porta. Antes de falar, percorreu-a com o olhar. Ela trazia apenas um vestido
comprido, que por sinal era bastante transparente. Sorriu e preparou-se para a
cumprimentar.
- Olá papoi.... - não
acabou a frase.
Foi interrompido pela mão
suave e doce de Lianne, que lhe tapou a boca. Lianne sorriu-lhe sedutora e
matreira enquanto com a outra mão o puxava para dentro de casa.
- Não digas nada e vem. Preciso de ti -
sussurrou Lianne.
Deixou-se levar por ela, a
transbordar de excitação.
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