Assim, quase do nada...
Ela via-o quase todos os dias, aliás, só
não o via ao fim-de-semana, mas não lhe sentia a falta, andava sempre ocupada
com outras guerras. Ele tinha um ar sereno e uns olhos doces. Sim, doces,
embora nem soubesse dizer de que cor seriam. Ia ao sítio onde sabia encontra-lo
com alguma ansiedade alegre, mas sempre que os seus olhos se cruzavam com os
dele, desviava o olhar. Isso entristecia-a mas não sabia ser de outro modo. Para
minimizar essa tristeza, convencia-se que era no dia seguinte que algo de
diferente ia acontecer. Sentia-se melhor com isso.
Dele nada sabia, nem sequer se já tinha
reparado na sua existência, sabia apenas que tinham pelo menos uma coisa em
comum, ambos gostavam de música. Ele porque a esse mundo estava ligado e ela
porque tinha a convicção que a vida sem música era algo demasiado cinzento.
Seria isso o suficiente para duas pessoas se ligarem? Não fazia ideia, talvez
fosse. Afinal quem era ele? Conseguiriam partilhar algo mais? O que liga as
pessoas? O que as faz “procurarem-se”? Não era apenas um ponto? Apenas um
ponto, não, o ponto! O ponto de início. O ponto mais importante.
Vivia com estes pensamentos diariamente, era
tudo o que tinha. Mas queria mais. Queria saber dele, ouvi-lo, sentir o seu
sorriso. Era isso que faltava, o sorriso, nunca o tinha visto sorrir.
E agora ali estava ele, no meio da
confusão de gente excitada com a música alta e os copos a rodos. Era a primeira
vez que o encontrava num contexto diferente e embora para ela fosse um espaço habitual,
começou a sentir-se algo constrangida. Aí tinha a oportunidade que tanto tinha
querido, mas… e agora? Que raio ia fazer? Tinha tanto a ganhar e ao mesmo tempo
tanto a perder. Nos últimos tempos tinha aprendido, a custo, que uma mulher não
devia abordar um homem, era quase como “se pôr a jeito”. A sua geração, no que
respeita á relação entre pessoas, tinha entendimentos medonhos. Se uma mulher
aborda um homem, seja por que razão for, não passa de uma doidivanas (por vezes
passa a coisas bem piores). Tem que se “mostrar” e esperar que aquele que quer
abordar repare nela e tenha vontade de a conhecer. Que ideia mais parva. Ela
nunca foi assim, quando algo ou alguém desperta a sua curiosidade, a intriga,
ela não quer ficar á espera “mostrando-se”, vai á procura. E isso faz dela o
quê? Apenas alguém bastante inquieto com a vida. Não é assim tão mau. E se ao
abordá-lo, simplesmente fosse ignorada? Acabava-se tudo. Deixava de lado os
pensamentos que a tinham alimentado nos últimos tempos. Ficaria triste, mas
acabaria por esquecer. Não tinha assim tanto a perder, afinal.
Acabou por se levantar, ainda com pouca
convicção, e serpenteando por entre os presentes conseguiu chegar perto dele.
Queria sorrir, mas sentia-se demasiado apreensiva para o conseguir fazer. Ficou
ali a olhar para ele a sentir-se uma completa idiota até que viu. Viu um
sorriso inesperado a ilumina-la. Ele sorriu-lhe. Assim, quase do nada,
sorriu-lhe e disse-lhe qualquer coisa. Mas o que era? Pediu-lhe para repetir. A
sua cabeça estava um turbilhão, deixou de saber onde estava e o que devia
fazer. Perdeu-se naquelas palavras. Ele apenas lhe disse que finalmente
poderiam conversar um pouco. Mas isso para ela era a resposta a muitas das suas
dúvidas. Ele sabia da sua existência! Invariavelmente não acreditava que fosse possível,
mesmo quando o desejava pensava que tudo não passava de uma fantasia sua e
depois… depois ficava surpreendentemente maravilhada.
Sentiu uma mão no seu rosto e deu-se
conta que a sua paralisação tinha durado tempo demais. Sorriu. Sorriu com a
alma. Ali estavam aqueles olhos doces, abertos, desprotegidos. Deixou-se levar.
Tinha acabado o tempo dos pensamentos, dúvidas e fantasias. Começava um novo
tempo. O tempo de se despir de tudo e abrir a percepção. Um tempo de incógnita,
não dúvida, mas uma incógnita invocativa. O início de uma página, a que ela se
entregava. Breve, longa, intensa ou desinteressante, não sabia. Apenas sabia
que tinha que estar nessa página. E queria.
Sorriu de novo, segurou-lhe na mão e deu
um passo. Foram.
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