Á deriva na inquietude - I
I
Joseph acordou para mais um dia.
Um dia igual a tantos outros, passado entre paredes nos seus quatro metros
quadrados pouco ventilados e deprimentes. Os seus dias eram assim. Por vezes
tinha algo para fazer fora de casa. Alguma chatice a tratar ou alguma saída com
algum amigo. Dantes ainda dava uso ao seu baixo, mas até isso se tinha
esfumado, ultimamente só lhe tocava para ter a certeza que ainda existia. Havia
dias, quando tinha alguma coisa no bolso, até ia beber uns copos, mas esses
dias eram poucos. Saiu da cama com um salto, dirigiu-se á casa de banho e
olhou-se ao espelho.
- Raios, parece que fui
atropelado!
Fez a sua higiene e voltou para o
quarto. Enfiou umas calças coçadas pelo tempo e uma camisola por cima da
t-shirt. Fez um cigarro a custo, as mãos não estavam a ajudar, acendeu-o,
aspirou fundo e fechou os olhos. Não se sentia preparado para mais um dia, mas
tinha que aguentar. Era só mais um dia.
Recostou-se na cama a saborear o
seu cigarro e a pensar em como é que tinha chegado ali. Não culpava ninguém, afinal
sempre tinha feito o que quis. Foram anos de vícios a destruírem-lhe o corpo e
a mente. Não, a mente nem ficou assim tão mal. E nem se queixa disso, afinal
alguns desses anos até foram bem bons. O resultado é que não foi grande coisa.
Ali estava, sem conseguir arranjar um trabalho, totalmente dependente da
assistência social, a tentar manter-se á tona. Era tão fácil deixar-se ir ao
fundo. Deu uma chapada a si próprio.
- Hey, pára lá com as parvoíces.
Vai mas é ver se sobrou algum vinho.
Ao entrar na cozinha franziu o
sobrolho e teve vontade de voltar para trás.
- Sério? Que grande porcaria!
Ainda vou ter que limpar esta treta toda? E vinho? Não há! Isto está mesmo a
correr bem.
Voltou para o quarto a tentar
esquecer que havia uma cozinha naquela casa. Lembrou-se de repente que tinha
uma garrafa de água no congelador. Foi buscá-la. Felizmente estava só
semi-congelada, pensou. Bebeu um golo quase interminável.
- Bom, parece que hoje em vez de
ser dia de desidratar é dia de hidratar. As coisas a que me sujeito, porra!
Voltou para a cama, arrotou e
recostou-se.
- Ups …. É só água!
Tinha que se lembrar se tinha
alguma coisa para fazer. Tinha? Não, não se lembrava de nada. Era mesmo só mais
um dia como os outros. Fez outro cigarro, agora com maior agilidade de mãos.
Pelo menos isso tinha melhorado. Acendeu-o, vestiu o blusão, enfiou o chapéu e
sai Apalpou os bolsos.
- Ai, falta o telemóvel!
Voltou a entrar, procurou á
volta, onde se tinha enfiado o estúpido do aparelho? Ah, lá estava, mesmo em
cima da mesa-de-cabeceira. Meteu-o no bolso e voltou a sair. Desta vez cheio de
confiança. Ia passar na tasca, podia ser que alguém lhe pagasse uma tacinha.
Entrou na tasca e olhou á volta,
lá estavam as caras do costume no sítio de sempre. Aquilo já parecia lugares
cativos. Foi cumprimentando de um lado e de outro, com um sorriso nem sempre
sincero, havia por ali gente de quem sinceramente não gostava, até que ouviu
uma voz vinda do fundo do balcão.
- Hey Joseph, vai uma tacinha? Já
não te via por aqui há uns dias! Estás bem moço?
Era o seu vizinho, o da alcunha
esquisita. Costumava diariamente desesperar com a música pouco interessante que
ele insistia em ouvir bastante alto e com o ladrar do cão. Mas sinceramente, o
cão era o que o incomodava menos. Dirigiu-se para lá.
- Hey, não tenho estado por aqui
– mentiu.
Já há dias que não saía de casa.
Meteu a mão ao bolso e sacou de umas moedas.
- Deixa lá isso, eu pago-te o
copo! – Disse-lhe o vizinho.
- Ok, isto ainda dá para uma
bifana.
Lembrou-se que não tinha comido
nada. Pediram a bifana e as duas tacinhas e ficaram por ali a falar da vida
torta quase comum aos dois.
Nisto, toca o telemóvel. Tirou-o
do bolso atabalhoadamente e olhou-o. Era a sua amiga Emily. Alguém de quem
gostava bastante, tinha que atender.
- Vou ali fora atender!
Correu para a porta com medo que
o telefone parasse de tocar. Atendeu.
- Oi Emily, como estás tu
rapariga?
Ouviu do outro lado pergunta
idêntica, assim como a Emily a perguntar se podia passar por casa dele mais
tarde. Afinal já não se viam há algum tempo. Tinha saudades dela.
- Sim, sim, claro rapariga. Estou
aqui na tasca, mas não tarda volto para casa. Espero por ti. Até já rapariga!
Desligou. Ia ser bom passar algum
tempo com a Emily, a sua companhia fazia-lhe sempre tão bem. Pena não ter nada
para lhe oferecer. Bom, tinha água, já não é mau.
Voltou para dentro e para a
conversa com o vizinho, sem deixar de se sentir empolgado com a visita que ia
receber. Agora sim, sorria cheio de vontade.
O vizinho lá continuou com as
suas palavras pouco estimulantes. Já há alguns momentos atrás tinha deixado de
o ouvir. Estava focado na Emily. Uma amiga que vinha da sua juventude, do tempo
em que ainda tinha sonhos, a ambição de fazer coisas memoráveis, enfim, dos
tempos de ingenuidade. Lembra-se bem. Nessa altura tudo era descoberta. O país
tinha-se aberto ao mundo poucos anos antes, e esses anos em que ganhou a
liberdade da busca foram quase extenuantes de tão intensos. Emily acompanhou-o
em algumas dessas aventuras, felizmente não em todas. Vem-lhe á memoria o modo
como ela se afastou de tudo o que não gostava nele e foi nessa altura que
começou a sentir a sua vida a fugir-lhe, não pela Emily, mas por todas as
opções para lá de duvidosas que acabou por seguir.
Abanou a cabeça vigorosamente.
- Mas estás parvo, estupido ou imbecil?
– Escapou-lhe em voz alta.
- Que foi Joseph? Que disse eu
assim de tão idiota? – Perguntou o vizinho.
- Desculpa, estava a pensar aqui
numas coisas e saiu-me parte pela boca. Acho que é melhor ir apanhar ar. Até
logo, pá!
Fez uma festa ao cão, no qual
ainda nem tinha reparado, e apressou-se a sair dali.
Não queria voltar para casa,
afinal, a Emily ainda ia demorar e tinha tempo de sobra para exercitar as
pernas.
A sua amiga tinha voltado e era
nisso que se queria focar. Num presente mais risonho com a presença dela. Tinha
ficado surpreendido que ao fim de tanto tempo, ela o tivesse querido encontrar
de novo. Dizem que os verdadeiros amigos voltam sempre a encontrar-se, mais
cedo ou mais tarde. Parece que é verdade.
A vida tinha-lhe tirado quase
tudo. Errado! Ele tinha permitido isso. Tinha estragado tanto que se assim não
fosse nem compreensível seria. E por tudo ter sido assim, ultimamente só
conseguia encontrar paz e talvez alguma esperança (nem sabia bem o significado
dessa palavra), no fundo de um copo. Sentia que caminhava por um túnel negro
sem luz ao fundo, e que não existia nada que o impedisse de continuar. Era
assim. Olhou para o chão e decidiu voltar para casa. Sorriu de novo. Ia estar
com a Emily e por agora era só isso que importava.
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